segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Coluna 'Um quê de Neurociência'



Especialização hemisférica: afinal, temos um ou dois cérebros?


Arthur Giraldi Guimarães*



Somos animais de simetria bilateral. Isso significa que podemos dividir o nosso corpo em dois lados simétricos, o lado direito e o lado esquerdo, sendo um o espelho do outro. Essa simetria não é perfeita e existem exceções, como o coração, que tem dois terços da sua estrutura no lado esquerdo, os pulmões, onde o esquerdo é menor que o direito (justamente para dar espaço para o coração), e etc...

Figura 1 - (A) Temos dois cérebros? Cada hemisfério tem especialização de funções cognitivas que conferem a cada um uma forma específica de "ver o mundo". (Imagem extraída de: Forest Azuaron). (B) Vista superior do cérebro humano, mostrando seus dois hemisférios. Estão colocadas as principais especializações de cada hemisfério, algumas bem confirmadas e outras ainda em debate. (Imagem extraída do livro "Cem Bilhões de Neurônios - Lent, 2002")

Mas a simetria é a regra. Isso obviamente vale para o nosso Sistema Nervoso Central, incluindo o nosso cérebro. Ele é dividido em dois hemisférios, o direito e o esquerdo (figura 1). Eles são bastante simétricos, tanto do ponto de vista anatômico como funcional. Entretanto, já está muito bem estabelecido que eles não funcionam de forma totalmente igual. Na verdade, eles apresentam especializações quanto a algumas funções cognitivas, funcionando de forma distinta (figura 1). Isso faz os neurocientistas se questionarem: temos um ou dois cérebros? Os hemisférios cerebrais cooperam ou competem entre si? Qual a contribuição e relevância de cada hemisfério para a consciência? Como a unidade da nossa consciência é possível? Sim, afinal temos apenas uma, certo? Será?

Estas são algumas das principais questões científicas dos pesquisadores que investigam uma importante área da Neurociência: a lateralização e especialização cerebrais. Um exemplo de função lateralizada é amplamente conhecido há bastante tempo: a preferência por uma das mãos ou por uma das pernas, em função deles terem maior habilidade motora para escrever ou fazer embaixadinhas com uma bola, respectivamente. Daí o conceito de "destro" ou "canhoto".

Sistemas sensoriais, como visão e tato, bem como o sistema motor, apresentam controle cruzado. Ou seja, a percepção consciente do lado esquerdo do campo sensorial e o controle voluntário dos músculos esqueléticos do lado esquerdo do corpo são feitos pelo hemisfério direito, e vice e versa. Assim, no caso do comando motor, existe uma maior habilidade de controle em um dos hemisférios. Essa maior habilidade em um dos lados também existe para outras funções cognitivas importantes. E é a isso que se denomina especialização hemisférica.

Figura 2 - (A) Corte coronal do cérebro mostrando, no detalhe, a passagem de axônios de um hemisfério para o outro. (Imagem extraída e modificada de: A.D.A.M.). (B) Imagem de ressonância nuclear magnética de um encéfalo normal, mostrando a vista lateral do encéfalo (corte óptico feito na linha média, limite entre os lados direito e esquerdo). As setas vermelhas mostram o corpo caloso. (C) Imagem de ressonância nuclear magnética de um paciente que sofreu a calosotomia, com remoção total do corpo caloso. (Imagens B e C extraídas e modificadas de: Epilepsia).


A origem dos estudos sobre a especialização hemisférica é antiga, mas eles tiveram importante impulso a partir de 1960, com os estudos dos neurocientistas Roger Sperry e Michael Gazzaniga. Esses estudos, que duram até hoje, foram e são feitos com pacientes que sofreram calosotomia, que é a remoção cirúrgica do corpo caloso (figura 2). Estes pacientes são conhecidos como “split brain” (cérebro dividido). Essa cirurgia é feita como último recurso para epiléticos onde outras intervenções não tiveram resultado, e tem o objetivo de evitar que a onda epilética passe de um hemisfério para o outro, reduzindo o seu efeito.

O corpo caloso é uma estrutura formada por axônios de neurônios localizados num hemisfério cerebral e que cruzam a linha média e fazem sinapses com neurônios localizados no outro hemisfério (figura 2). Portanto, é a principal estrutura responsável por fazer a comunicação entre os dois hemisférios. Qualquer informação que parta de um hemisfério só pode ser enviada até o outro através do corpo caloso.

Os estudos do Gazzaniga, junto com os de outros pesquisadores, demonstraram de forma inequívoca que cada hemisfério apresenta sua forma específica de processar as informações que recebe. Numa pessoa normal (com o corpo caloso) os hemisférios trocam as informações, sendo o processamento então integrado. Entretanto, no paciente “split brain” essa troca não ocorre, e assim pode-se estudar como cada hemisfério “trabalha” independentemente (figura 3).

Figura 3: Exemplo de estudo com os "split brain". (A)  No caso da visão, podemos traçar uma linha imaginária vertical, dividindo o campo visual em lado direito e lado esquerdo, ambos de mesma dimensão. O lado direito do campo visual é transmitido para o hemisfério esquerdo pelas vias visuais, sendo lá processado. E vice e versa. Nos pacientes “split brain”, objetos localizados no campo esquerdo são processados no lado direito, mas a informação não é passada para o lado esquerdo, pela falta do corpo caloso, e vice e versa. Os estudos com estes pacientes mostram que eles não conseguem identificar ou descrever verbalmente objetos que são colocados no seu campo visual esquerdo (sendo então processado no hemisfério direito), mas sim objetos colocados no campo visual direito. Isso é uma prova de que a especialização para o processamento da fala, que permite que algo seja descrito verbalmente, está localizado no hemisfério esquerdo (Imagem extraída e modificada de: Psicologia Previtali). (B) Quando é pedido ao paciente que reconheça tatilmente com a mão esquerda o objeto descrito pela palavra exposta no seu campo visual esquerdo (ambos controlados pelo hemisfério direito), ele identifica e segura o objeto correto, apesar de não conseguir verbalizar o que está segurando ou lendo. (Imagem extraída de: Gazzaniga et al., 2006).

Os estudos com pacientes “split brain” ajudaram muito na caracterização das diversas especializações que cada hemisfério apresenta (figura 1). Por exemplo, o hemisfério esquerdo é o que controla a fala e os aspectos gramaticais (conjunto de regras para o uso de uma língua) e semânticos (significado de símbolos e palavras) da linguagem. Isso explica porque pacientes de Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou traumatismo no lado esquerdo do cérebro tendem a apresentar sérios déficits de fala e/ou compreensão da fala, ao contrário daqueles afetados no lado direito. Como raras coisas em biologia são "tudo ou nada", as exceções existem, e poucas pessoas (menos de 4%) possuem essa especialização no hemisfério direito.

Já o hemisfério direito é o principal responsável pelo processamento de outro aspecto igualmente importante na comunicação verbal: a prosódia (as variações de entoação, o ritmo e intensidade que são usadas na fala). Ela é tão importante para a comunicação verbal quanto à gramática e à semântica. Afásicos por lesão do hemisfério esquerdo perdem a compreensão semântica da fala, mas mantêm a capacidade de perceber a prosódia (e até a amplificam com o tempo).

Por isso, é dificílimo enganar pela "lábia" um paciente desse, pois ele percebe com mais precisão se uma pessoa que fala está sendo sincera ou está mentindo. A prosódia da fala, expressa involuntariamente pelo falante, entrega o mentiroso, e o afásico percebe isso bem melhor do que uma pessoa com os dois hemisférios íntegros! Esse fato é interessantemente relatado num dos contos do neurologista Oliver Sacks ("O Discurso do Presidente"), em seu livro O Homem Que Confundiu Sua Mulher Com Um Chapéu (leitura obrigatória para quem gosta de Neuro!).

Uma possível explicação para as especializações hemisféricas pode ser evolutiva. Pode ser que acabar com a "disputa" de comando entre os hemisférios, colocando comandos específicos em apenas um deles, confira uma vantagem adaptativa. Isso pode propiciar economia de energia e maior eficiência na execução de algumas funções cognitivas de valor adaptativo. Por exemplo, no caso da linguagem, talvez seja melhor para o comando da fala colocá-lo apenas no hemisfério esquerdo. Se os dois lados tivessem igual poder de comando, poderia gerar conflitos. De fato, parece que é justamente essa a origem de problemas da fala, como a gagueira.

Estudos têm mostrado que, ao contrário de pessoas com fala normal, os gagos não apresentam a especialização para o processamento da compreensão fonética (de palavras faladas) no hemisfério esquerdo. Nos gagos, ambos os hemisférios respondem por isso. E isso é observado não só em adultos, mas também em crianças em idade pré-escolar, justo no período onde a gagueira começa a se estabelecer. Isso sugere que a gagueira pode mesmo ser consequência dessa falta de especialização hemisférica do processamento da fonética, e não o contrário (a falta de especialização como consequência da gagueira, o que também poderia ser possível).

Para finalizar esta prosa, é óbvio que os hemisférios cooperam entre si para produzir a percepção integrada dos sentidos e para gerar respostas cognitivas coordenadas. Enfim, gerando uma consciência unificada. Entretanto, evidências mostram que eles também podem competir por poder de comando! Uma das mais interessantes, e bizarras, evidências disso é a "Síndrome da Mão Alheia". Ela acomete pacientes "split brain" e corresponde à aquisição de movimentos involuntários por um dos braços. Sem a vontade e o controle consciente da pessoa, o braço se move "sozinho", e pode simplesmente derrubar um objeto, tentar retirar a blusa, ou até esbofetear a própria face ou tentar estrangular o próprio pescoço! É como se o braço passasse a ser controlado por "outra pessoa" ou por algum "espírito brincalhão" incorporado no braço afetado.

Com os hemisférios conectados pelo corpo caloso, normalmente o lado dominante (o que tem a "palavra final") é o esquerdo. Quando eles são desconectados pela remoção do corpo caloso, inicia-se uma competição por "poder". De fato, pacientes "split brain" demonstram claramente essa competição quando lhes é pedido para realizar tarefas específicas com uma das mãos. O que se observa é que a outra mão começa a se meter na tarefa, involuntariamente, e as duas ficam "brigando", competindo para ver quem faz a tarefa! Na síndrome, por alguma razão, a competição fica mais feia e um dos hemisférios começa a ficar "enfurecido", gerando os movimentos bizarros. Bizarros justamente por serem comandados por um dos hemisférios, mas sem serem comandados pela consciência da pessoa.

Enfim, mais um dos mistérios que tornam o estudo da Neurociência uma coisa fascinante!



*Professor do Laboratório de Biologia Celular e Tecidual (LBCT) do Centro de Biociências e Biotecnologia (CBB) da UENF.



SUGESTÃO DE LEITURA:

Michael S. Gazzaniga, Richard B. Ivry, George R. Mangun. Neurociência Cognitiva: A Biologia da Mente. 2ª edição (2006). Ed. Artmed.

Oliver Sacks. O Homem que Confundiu Sua Mulher Com Um Chapéu. Ed. Companhia das Letras.

Sato Y, Mori K, Koizumi T, Minagawa-Kawai Y, Tanaka A, Ozawa E, Wakaba Y, Mazuka R. Functional lateralization of speech processing in adults and children who stutter. Front Psychol. (2011) 2:70; pp 1-10.




3 comentários:

  1. muito legal essa coluna! Todas as matérias são muito interessantes! Parabéns pela idéia! Indiara dos Santos Sales- Doutoranda em Ciência Animal/UENF

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  2. Arthur. Aqui quem escreve é o Rodrigo Burgos. Quanto tempo, cara! Procurando por você no google esbarrei nessa excelente coluna que você escreve! Não sei se você já leu, mas tem um livro chamado "The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind" que trata um pouco dessa "briga" entre hemisférios. O mais interessante das teorias abordadas é o argumento de que até 1000 anos antes de Cristo, o ser humano não tinha consciência sobre a "voz interior" (essa vozinha com quem a gente conversa para testar idéias, pensamentos, etc, que alguns chamam também de consciência). A consequência disso é que muitos dos "fundadores de religiões" acreditavam que "deus" falava com eles, mas na verdade isso era puro desconhecimento de que essa "segunda voz" era deles mesmos! A citação desse livro vem de outro excelente que é "Deus: um delírio" do Richard Dawkins. Na verdade, durante a evolução da nossa espécie, no meio do caminho entre o surgimento dessa "segunda voz" e o conhecimento de que ela também é nossa, o homo sapiens ficou bem confuso... O engraçado é que grande parte da humanidade hoje segue alguma religião e todas elas foram "fundadas" por pessoas que de alguma forma "falaram com deus"... se qualquer uma dessas pessoas vivesse hoje, estaria num manicômio, no entanto muitos seguem o que esses loucos imaginaram sem ter essa consciência... engraçado, não?
    Grande abraço!

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  3. Olá Rodrigo! Quanto tempo mesmo. Obrigado pelo seu comentário, que é bem interessante. Conheço o livro do Dawkins (Deus: um delírio - recomendo, dele também, "O Gene Egoísta"). Isso que comentou está relacionado com um assunto que certamente será abordado na coluna. Já existem evidências, vindas de estudos com a estimulação magnética transcraniana, que fenômenos tidos como espirituais ou religiosos podem ser induzidos em pessoas normais. Experiências extracorpóreas, tidas como "espirituais" (sensação de sair do próprio corpo), bem como aquelas do tipo "religiosas" (ver ou sentir a presença de entidades religiosas, espíritos, anjos, falar com Deus, etc...), podem ser induzidas pela estimulação cerebral.

    Grande abraço!

    ARTHUR

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