segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Um quê de Neurociência


Córtex pré-frontal e funções executivas: a incrível semelhança entre o recente caso do operário carioca e o caso clássico do paciente Phineas Gage


                                                                                                            Arthur Giraldi Guimarães*


Na manhã do dia 16 de agosto deste ano, ocorreu um evento marcante na cidade do Rio de Janeiro. Um operário da construção civil, de 24 anos de idade, sofreu um terrível acidente: um vergalhão de ferro penetrou seu crânio, perfurando o seu cérebro e transpassando a região entre os olhos! Antes e depois da cirurgia para remoção da barra, mostrou-se consciente e lúcido, sem aparente mudança comportamental (vide links abaixo).

Quem é estudioso da Neurociência e viu as imagens da reconstrução da região perfurada a partir da tomografia, amplamente divulgadas na mídia (ver figura 1), deve ter tido a mesma impressão que eu: “Nossa! Igual ao caso do Phineas Gage!”. Idêntico não foi, mas foi muito semelhante, pois atingiu a mesma região do cérebro, a área pré-frontal do córtex cerebral (ou córtex pré-frontal) (ver figura 2).

Figura 1: Imagens feitas por tomografia computadorizada, mostrando a região perfurada pela barra no crânio do operário carioca. A região cerebral afetada foi o córtex pré-frontal. (Imagem extraída de: The Guardian)

Em 1848, nos EUA, Phineas Gage tinha 25 anos de idade e também era um operário da construção civil, responsável pela construção de trilhos de trem. O eminente neurocientista Antônio Damásio descreve e discute em detalhes o caso do Phineas Gage em seu excelente livro O Erro de Descartes. Como descrito por Damásio em seu livro, Gage era respeitado por seus colegas e considerado uma pessoa séria, competente, astuta, inteligente e persistente na execução dos seus planos de ação.

Na tarde do dia 13 de setembro daquele ano, durante a execução de uma tarefa cotidiana (a qual ele dominava muito bem), Gage cometeu um raro descuido e provocou uma explosão de pólvora antes do tempo. Isto impulsionou violentamente uma barra de ferro que segurava, de mais de um metro de comprimento e com uns 3 cm de diâmetro, que penetrou sua face esquerda e saiu pelo topo do crânio, indo cair a uns 30 metros de distância (ver figura 3).

Assim como o seu colega carioca dos nossos tempos, de forma surpreendente ele permaneceu consciente e lúcido mesmo logo após o acidente, respondendo às perguntas do médico e dos colegas e sendo capaz de descrever o ocorrido com clareza. Sobreviveu à infecção e foi dado como plenamente recuperado dois meses depois. Ele continuou com o mesmo quociente de inteligência (Q.I.), as mesmas habilidades motoras, visão, audição, memória  etc.

Mas, apesar disso, ele teve uma absurda mudança de personalidade, se tornando uma pessoa muito diferente do que era antes do acidente! Tornou-se uma pessoa desequilibrada, inconsequente, inconveniente, incapaz de planejar e direcionar sua vida. Foi como se tivesse virado “outra pessoa”, uma conversão total de personalidade e individualidade.

Figura 2: Localização do córtex pré-frontal dentro do crânio. (Imagem extraída de: Portal Educação)

Perdeu o emprego não por perda da competência, mas por se tornar um “mau caráter”. Perdeu os laços de amizade que tinha antes e não foi mais capaz de estabelecer vínculos afetivos e sociais duradouros, sem conseguir mais empregos fixos. Chegou a trabalhar como atração pitoresca de circo, exibindo sua ferida e sua barra. Quem antes era uma pessoa de valores e séria passou o resto da vida como um “cafajeste, inconsequente e indecente”.

Esse caso é clássico para a História da Neurociência porque serviu de base para a compreensão do envolvimento do cérebro na razão, emoção e personalidade, demonstrando o envolvimento do nosso córtex pré-frontal nessas propriedades cognitivas (provavelmente não foi o primeiro caso na história da humanidade, mas sim o primeiro a ser estudado mais aprofundadamente).

A partir do caso Gage, a Neurociência aprofundou os estudos e hoje sabemos que o córtex pré-frontal é responsável por um conjunto de funções cognitivas denominadas funções executivas. No geral, são o conjunto de processos que nos permitem planejar, tomar decisões e executar tarefas de forma organizada e premeditada. Estes processos são a memória de trabalho, o planejamento e organização, a atenção e concentração, o manejo do tempo, a metacognição (capacidade de “pensar sobre o pensamento”), as respostas inibitórias, a regulação do afeto, a iniciação de tarefas e os conceitos morais.

Lesões ou disfunções em áreas específicas dentro do pré-frontal, responsáveis por cada um destes processos, levam a alterações cognitivas correspondentes, como a perda da inibição do medo (sendo a base dos transtornos de ansiedade e do pânico), perda das associações morais e do sentimento de culpa (base da psicopatia), perda da capacidade de antever as consequências de uma ação que se pretende tomar, perda da capacidade de repensar sobre ações tomadas, perda da capacidade de concentração (sendo base para o déficit de atenção) etc.

Figura 3: Esquerda: Imagens da reconstrução feita a partir das perfurações do crânio do Phineas Gage, mostrando a provável localização da região perfurada no seu cérebro pela barra. Nota-se que a lesão foi integralmente dentro do córtex pré-frontal. Meio: O crânio de Phineas Gage e a barra de ferro, no museu da Faculdade de Medicina de Harvard. Direita: Foto recém-descoberta do Gage segurando sua barra (Imagens extraídas de: ciencia.folhadaregiao)

Um aspecto interessante sobre o córtex pré-frontal é que é a última região do cérebro humano e se desenvolver completamente. Isto ocorre só a partir dos 18 anos de idade. Portanto, o fato de os adolescentes serem normalmente impulsivos, inconsequentes, rebeldes e desfocados não é mera coincidência! E tem mais: o fato de uma pessoa ficar agressiva, inconveniente e descontrolada após beber muito álcool também não é mera coincidência, uma vez que o excesso de álcool tem ação inibitória sobre o pré-frontal.

Bom, ainda é cedo para saber que sequelas cognitivo-comportamentais o operário carioca terá. Mas é possível que tenha alterações semelhantes às que ocorreram com o Phineas Gage. Podem até ser diferentes, em função de ter afetado regiões diferentes dentro do pré-frontal, mas é provável que tenha alguma alteração nas suas funções executivas.

Ou então pode não ter sequela alguma, uma vez que o sistema nervoso é plástico e tem a capacidade de se reestruturar para recuperar danos. Façamos votos que seja isso que aconteça com o nosso carioca, sendo mais um dos diversos exemplos da capacidade restaurativa do nosso cérebro!

Para quem não viu o caso na mídia, um link para atualização: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/operario-perfurado-por-vergalhao-segue-em-uti-no-rio.html

Para os estudiosos e para os curiosos de estômago forte, esse é um link onde se podem ver imagens pré-operatórias do paciente carioca: http://www.wtfnoticias.com.br/2012/08/fotos-operario-do-rio-de-janeiro-teve.html


*Professor do Laboratório de Biologia Celular e Tecidual (LBCT) do Centro de Biociências e Biotecnologia (CBB) da UENF.


SUGESTÃO DE LEITURA:

DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

3 comentários:

  1. Creio que o operario carioca ja comecou a manifestar serias e evidentes transformacoes comportamentais. Numa rapida entrevista concedida por ele ao deixar o hospital, ele declarou que passaria doravante a beijar sua mulher e dizer o quanto a ama, todas as manhas, antes de ir para o trabalho. Parece que o vergalhao ativou-lhe uma area do cerebro responsavel pelo romantismo no homem. Tem muita esposa desejando ardentemente que caia um vergalhao na cabeca do proprio marido...

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    1. Casos como esses dispertam na neurociência um olhar diferenciado quanto as pesquisas e práticas voltadas para funções específicas de áreas no cérebro, especialmente no cortex pré-frontal, incluindo como exemplo funções executivas superiores, como tomada de decisão..........................

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  2. Olá professor, tem alguma notícia a respeito do estado atual de saúde do operário carioca? Sou estudante de psicologia e estou fazendo um trabalho sobre Phineas Gage e outros pacientes com lesões no lobo pré-frontal

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