A permissão do aborto em casos de anencefalia pode abrir caminho para a legalização do aborto também em outros casos de anomalias fetais, oficializando, na prática, a eugenia. A opinião é do filósofo
Júlio Esteves, que nesta entrevista critica a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do assunto. “Mais uma vez, o Supremo esteve tomando uma decisão que caberia ao Congresso. Ocorre que os parlamentares, por conveniência política, lavam as mãos”, afirma. Graduado, mestre e doutor em Filosofia pela UFRJ, Esteves é professor do Laboratório de Cognição e Linguagem (LCL) do Centro de Ciências do Homem (CCH) da UENF. Ele procurou a equipe do
Blog Ciência UENF após ler a matéria
‘Bebê anencéfalo não tem sensações conscientes’, publicada em 20/04, que busca explicar o que é a anencefalia do ponto de vista da neurobiologia. Veja a entrevista:
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Júlio Esteves |
Ciência UENF - Muitas pessoas, mesmo sendo contrárias ao aborto, acham plausível a
interrupção da gravidez no caso de anencefalia, já que o bebê não tem como sobreviver. Por que o senhor é contra?
Júlio Esteves - Começo a resposta fazendo-lhe a seguinte pergunta: suponha que um médico lhe diga que você tem um problema tão sério no cérebro que não terá como sobreviver por mais de uma semana. Você acharia plausível que ele quisesse interromper logo a sua vida, alegando, por exemplo, que você só vai dar uma despesa inútil consumindo alimentos para manter uma vida sem perspectiva? Evidentemente, você não concordaria com isso. O problema na base desse argumento pragmático a que você aludiu, um argumento quase que “mercantilista”, está em condicionar o valor da vida humana ao tempo de sua sobrevivência, ao passo que a vida humana tem um valor incondicional, é algo que não tem preço, tem um valor absoluto, jamais relativo ao tempo de sua existência. Ou será que a vida de uma pessoa que sobrevive por 80 anos, pois, no fundo, todos somos “sobreviventes”, vale mais do que a vida de alguém que morre aos 10 anos ou a de alguém que vive por apenas algumas horas? E eu acho até engraçado quando algumas pessoas retrucam com um surrado clichê, segundo o qual eu estaria “sacralizando” a vida humana. Costumo responder a isso lembrando que a alternativa à sacralização da vida humana é a sua banalização. E eu desafio qualquer defensor do aborto a admitir que a sua própria vida seja coisa banal! É claro que mesmo um defensor do aborto julga que sua própria vida é sagrada e preciosa. Mas ele se arroga o direito de decidir em que condições outra vida humana pode ser considerada sagrada e digna de ser vivida!
Ciência UENF - Segundo consta, um dos motivos que levaram esta discussão ao STF foi o
elevado número de casos de mães que entram na Justiça para garantir o direito de abortar quando descobrem que o feto tem anencefalia. Como o senhor acha que o STF deveria ter se posicionado sobre essa questão?
Júlio Esteves - A pergunta acima foi colocada por você e respondida por mim do ponto de vista moral. Essa outra pergunta tem a ver com o aspecto jurídico e até político do problema. Para começo de conversa, tecnicamente falando, o Supremo esteve mais uma vez tomando uma decisão que caberia ao Congresso. Ocorre que os parlamentares, por conveniência política, lavam aos mãos e evitam discutir a questão do aborto em quaisquer de suas modalidades, porque sabem que a esmagadora maioria da população brasileira, em suma, seus eleitores, é terminantemente contrária a que se legalize a prática. Desse modo, grupelhos de esquerda tentam encontrar um “atalho” para fazer valer pontos de sua agenda política particular. Isso é muito ruim para a democracia, porque nos países em que se veio a legalizar o aborto, isso pelo menos foi o resultado de uma ampla, franca e democrática discussão entre todos os setores da sociedade. Aliás, a respeito do suposto “grande número de mulheres que recorreriam à justiça para abortar fetos anencéfalos”, você poderia me dizer onde estão as estatísticas oficiais a respeito? De minha parte, o que eu sei é que há um grande, na verdade, um enorme número de mães pobres e carentes que gostariam de poder recorrer à justiça contando com o apoio de ONGs e de grupos de esquerda para, por exemplo, garantir água encanada e esgotamento sanitário em suas casas, de modo a proporcionar uma vida digna a seus filhos, sem falar em escola, alimentação etc. E isso não é achismo de minha parte, não. Dados do próprio Governo Federal, obtidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), mostram que apenas 59,1% das residências do país em 2009 eram atendidas pelo serviço de rede coletora ou por fossa séptica ligada à rede. Mas — isto é curioso — por alguma razão, esse tipo de problema não suscita o interesse dos ongueiros e dos grupelhos de esquerda. Na verdade, pare e pense: com tantos problemas sérios que os brasileiros pobres ainda enfrentam para viver dignamente, mesmo depois de praticamente dez anos de um governo supostamente preocupado com o social, você acha que a legalização da permissão para matar possa ser uma demanda urgente da maioria da população brasileira? Claro que não é! O aborto de um modo geral é um pleito da agenda particular de ongueiros e esquerdistas auto-declarados “progressistas”, um pleito totalmente descolado da realidade do povo brasileiro. Essa é também uma razão pela qual os políticos não se interessam por esse tema: se fosse do interesse de expressivas camadas da população, qual político não iria querer abraçar essa causa? Voltando ao aspecto jurídico da questão, a decisão do STF é insustentável: a Constituição brasileira garante e protege o direito à vida. Assim, o STF, que deveria ser o guardião da Carta Suprema, acabou por violá-la em nome de um suposto “direito achado nas ruas”. Além disso, como disse o ministro Lewandowski, com toda correção, o Supremo deu um passo decisivo para permitir o aborto de fetos com má-formação, o que aponta para a eugenia.
Ciência UENF – Então o senhor acredita que isto pode, no futuro, levar à oficialização do aborto em outros casos de anomalias fetais, oficializando práticas eugênicas?
Júlio Esteves - Evidente! Se o critério apresentado para justificar a interrupção da gravidez está baseado numa relação mercantilista entre “custo/ benefício”, onde se põe na balança o tempo e, principalmente, a qualidade de sobrevida do feto, de um lado, e o correspondente sofrimento da mulher, de outro lado, então abre-se o caminho para a permissão da prática em outras formas de anomalias fetais. Chamo a atenção para o fato de que foi exatamente tendo por base princípios de relação custo/benefício para a sociedade que os nazistas autorizaram e praticaram o aborto em tais circunstâncias, ou seja, exatamente a prática da eugenia. Mas, é claro, nossos abortistas não são nazistas, pois são movidos por sentimentos “cristãos”, pela compaixão para com o inútil sofrimento da gestante que traz em seu ventre um feto anencéfalo. Eu só me pergunto por que essa mesma compaixão não os leva a iniciar uma campanha por um programa nacional de fornecimento de ácido fólico, que comprovadamente evita a anencefalia em 50 % dos casos! Também me pergunto por que essas mesmas pessoas não se sensibilizam e não têm a mesma compaixão, por exemplo, para com o sofrimento de uma mãe que vê seu filho sem professor de matemática ou de português numa escola pública!
Ciência UENF – O senhor considera errado, portanto, delegar às mães o direito de interromper ou não a gravidez quando houver um laudo médico atestando a anencefalia fetal?
Júlio Esteves - Como afirmei acima, discordo completamente não só da decisão, mas do próprio procedimento adotado pelo STF, pois feriu prerrogativas do Legislativo. Mas essa pergunta toca numa premissa muito usada pelos abortistas, a saber, a do suposto direito da mãe decidir pela interrupção de uma gravidez, porque, afinal, ela teria direito ao seu próprio corpo. Começo observando que, pelas informações que obtive de especialistas, a anencefalia do feto não acarreta para a gestante nunhum risco físico que já não esteja envolvido numa gravidez normal. Aliás, se fosse o caso, não haveria necessidade de levar o problema ao STF: o aborto de fetos anencéfalos já estaria garantido e consagrado pela lei que permite a prática em casos de risco para a vida da gestante. Agora, deve-se observar que a premissa ético-jurídica que está na base da permissão do aborto em casos de risco para a gestante não é a do direito ao próprio corpo, mas justamente a da proteção da vida humana: interrompendo uma gravidez de risco, sacrifica-se uma vida incerta em prol de uma outra vida capaz de gerar mais vidas. Mas é verdade que cada qual tem direito ao próprio corpo, e também toda mulher e mãe tem direito ao seu, o que não é senão outra maneira de se referir ao direito à própria vida, que eu mesmo afirmei ser algo sagrado. Mas, evidentemente, esse direito tem limites! Suponha que eu esteja muito aborrecido com o casamento, com o não-pagamento da DE pela UENF, com a corrupção endêmica no Brasil etc., e declare para quem queira me ouvir que vou tirar minha própria vida, que considero sagrada, em grande estilo, por exemplo, alugando uma BMW para pilotar a 260 km por hora pela BR-101. E suponha que alguém me quissesse impedir dizendo que eu estaria colocando em risco a vida de pessoas que não têm nada a ver com isso. Seria justo que eu alegasse que tenho direito a fazer com o meu corpo o que bem entendesse? Evidentemente, o direito ao meu próprio corpo e à minha própria vida não me dá o direito de dispor sobre o corpo e a vida dos outros; na verdade, de acordo com algumas teorias morais, com as quais concordo, eu não tenho direito, moralmente falando, a dispor nem de meu próprio corpo e de minha própria vida, ou seja, não tenho direito de retirá-la a meu bel-prazer. Desse modo, os abortistas estão totalmente enganados quando supõem que o direito ao corpo por parte da mulher lhe dê o direito de dispor da vida de um feto a seu bel-prazer. Extrair prematuramente um feto, uma vida humana, não é o mesmo que extrair um dente ou excesso de gordura abdominal! Além disso, como fica o direito dos pais? Nessa discussão, parte-se sempre do princípio de que a parte masculina não está nem aí para a existência ou não da criança, e, portanto, nem precisa ser consultada ou nem tem direito a isso. Mas isso é puro preconceito feminista! E chamo a atenção para o fato de que a sociedade brasileira vive um momento de repúdio absoluto a toda e qualquer forma de preconceito, seja ele de raça, de preferência sexual ou de gênero.
Ciência UENF - É contra qualquer tipo de aborto? Inclusive quando há risco para a saúde da mãe ou quando a gravidez é decorrente de estupro?
Júlio Esteves - A questão da permissão do aborto em caso de risco de vida para a gestante já foi respondida acima. - Já a questão do aborto decorrente de estupro constitui um exemplo daquilo que em ética se chama de “casos-limite”, diante dos quais, sem dúvida, é humanamente difícil dar uma resposta, porque você tem o que se chama de “conflito de normas”. Por um lado, se toda vida humana é sagrada e preciosa, então mesmo nesses casos, a gestação deveria, moralmente falando, ser levada adiante. Afinal, abortar uma criança gerada nessas condições seria punir um inocente que nada fez para merecer isso. As pessoas esquecem muitas vezes que em casos de estupro há não apenas uma, mas duas vítimas. Por outro lado, de fato, não é fácil levar a termo uma gravidez gerada em tais circunstâncias, sendo essa uma das razões pelas quais a permissão do aborto nesses casos é garantida e consagrada pelo nosso ordenamento jurídico. Pois creio, embora não tenha certeza, que se leve em conta também o lado da criança: não há de ser fácil vir a tomar conhecimento de que se foi gerado em tais circunstâncias. Como quer que seja, percebo que há uma tendência a generalizar abusivamente o que vale para um caso reconhecidamente problemático e complexo, a gravidez seguida de estupro, para casos que são de contornos claros e bem delineados, por exemplo, quando um marido ou namorado força a parceira a ter relações sexuais. Há uma tendência por parte dos auto-proclamados “progressistas” a considerar essas situações como casos de estupro, por conseguinte, como admitindo o aborto legal. E aí nos vemos quão “progressistas” e “revolucionários” eles são. Do mesmo modo que eles preferem resolver a anencefalia focando na retirada do feto, ou seja, na consequência, ao invés de se baterem pela prevenção das causas do problema mediante uma campanha nacional pelo fornecimento de ácido fólico, eles também preferem se bater pela permissão do aborto quando a mulher é forçada pelo marido, ao invés de lutarem vigorosamente pela prevenção desse tipo de comportamento, por exemplo, exigindo que se institua uma lei que obrigue o homem a assumir o sustento da criança sob pena de ir para a prisão. Não, os “progressistas” preferem deixar tudo como está: o marido ou namorado poderá continuar fazendo tudo que seu instinto animalesco pedir, pois será permitido à mulher se descartar do traste, ou seja, da criança, tranquilamente, logo em seguida. E os abortistas ainda têm a coragem de chamar seus opositores de “reacionários” ou “conservadores”! Quem é o verdadeiro conservador?
Ciência UENF - O fato de muitas mulheres desejarem o aborto nesses casos não é revelador quanto ao caráter traumático da questão, do ponto de vista da gestante? Como evitar que a manutenção forçada de uma gravidez assim prejudique a saúde psicológica da mulher?
Júlio Esteves - Como eu perguntei acima, quantas “muitas mulheres” são mesmo? Mas, sim, essa situação deve ser mesmo muito prejudicial para a saúde psicológica da mulher, como o é certamente para a saúde psicológica de uma mãe ver seus filhos fora da escola ou brincando sobre o esgoto a céu aberto, como se vê ainda hoje na capital de Pernambuco, o Estado em que nasceu o ex-presidente Lula. De todo modo, se você for pensar dessa maneira, quantas outras tantas situações na vida são traumáticas e causadoras de sofrimento? Lembro do sofrimento psicológico de minha mãe cuidando de meu avô, que morreu de cancer. Bem mais próximo do problema em tela, pense no que devia ser o sofrimento de muitas mães, há uns dez anos atrás, ao tomarem conhecimento de que traziam no ventre uma criança portadora de síndrome de down! De acordo com o que foi aprovado no STF e com o princípio da compaixão para com o sofrimento da mãe, essas mulheres teriam podido abortar fetos com síndrome de down. E, no entanto, sabemos hoje, quantas alegrias essas crianças são capazes de nos proporcionar! Mas, aí vão dizer que isso é totalmente diferente dos anencéfalos; que, nesse caso, não vale a pena o sacrifício. Ao que eu respondo citando o famoso verso de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
Fúlvia D’Alessandri