terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A visão da ciência nutricional sobre o café: faz bem ou faz mal?





Luiz Fernando Miranda da Silva, Karla Silva Ferreira


A palavra "café" vem do árabe Kahoua ou Qahwa (o excitante) e é designado como o fruto do cafeeiro, que origina a bebida consumida há mais de mil anos (1).Existem vários tipos de cafés e modos de preparo (Quadro 1), e no Brasil, o mais popular é o pó de café que origina o café expresso e o café de coador ou caseiro, que representa 67% do tipo de café mais consumido no país (2).
         
Quadro 1. Espécies, tipos de cafés e modos de preparo



O café é a segunda bebida mais consumida no Brasil, perdendo só para a água. É consumido em 98% dos lares e sua ingestão per capita chega a 81 litros por ano. O Nordeste, o Sul e o Centro-Oeste são regiões onde mais cresce o consumo de café, e o Estado de MG é o maior produtor (2).
Os efeitos do café sobre a saúde vão muito além do estímulo metabólico causado pela cafeína. Os principais compostos do café são as metilxantinas (cafeína, teobromina e teofilina), beta carbonilas (harmana e nor-harmana), ácidos clorogênicos (cafeoilquínicos, feruloilquínicos, dicafeoilquínicos, p-cumaroilquínico, cafeoilferuloilquínicos), (1,5) y-quinolactonas, tocoferóis, 5-hidroxitriptamidas, diterpenos e melanoidinas (6,8).

As metilxantinas são compostos com estruturas similares à adenosina (8), um nucleosídeo formado por uma adenina e uma ribose. No sistema nervoso central, a adenosina atua também como neurotransmissor, que, quando ligado ao receptor AI e A2A dos neurônios, produz efeito inibitório da atividade cerebral (efeito calmante). As metilxantinas, principalmente a cafeína, possuem a mesma capacidade de se ligar a estes receptores. É como se as metilxantinas roubassem o lugar da adenosina no seu receptor, bloqueando sua ligação e, portanto, a sua ação “calmante”. Consequência disto é o estímulo do metabolismo celular, que gera melhoria da memória, concentração e inibição do sono. Dentre as metilxantinas, a cafeína é a que possui efeito mais potente. Outro efeito estimulatório das metilxantinas é pela inibição das fosfodiesterases, enzimas que anulam o efeito do AMP cíclico (adenosina monofosfato) na ativação de outras enzimas do metabolismo, tornando-o menos ativo. Quando as metilxantinas se ligam a estas enzimas, impedem a degradação do AMP cíclico, gerando assim efeito estimulante do metabolismo (6,8).  


Figura 1. Metilxantinas presentes no café (8)

Diante deste efeito, veio a dúvida se o efeito da cafeína é maléfico ou benefícios à saúde, e em quais condições. As pesquisas atuais possibilitaram aos cientistas concluírem que o consumo de 3 a 4 xícaras de café/dia é capaz de prevenir dores de cabeça, doença de Parkinson, Alzheimer, depressão e pequeno efeito na redução de gordura corporal por meio da termogênese (100 Kcal, o que equivale ao consumo de um bombom). Gestantes, porém, devem restringir o consumo de café para não ultrapassar 150 mg de cafeína diariamente (até 2,5 xícaras de 60 mL de café expresso ou 4 xícaras de 60 mL de café caseiro feito com 20 g de pó para 250 mL de água) (8,6,9).

Não há estudos que mostrem que o consumo de café cause hipertensão, doenças cardíacas e gastrointestinais. Mas as pessoas já diagnosticadas com alguma destas doenças e/ou sob excesso de estresse ou fumantes devem reduzir ou suspender o consumo de café.

Existem no mercado os cafés descafeinados, que são a alternativa para as pessoas sensíveis ao efeito da cafeína. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) regulamenta que os cafés descafeinados não solúveis devem ter, no máximo, 0,1% de cafeína, e os solúveis 0,3%. Em caso de doença de refluxo do conteúdo gástrico, o consumo de café descafeinado também é prejudicial, mas tem efeito menos potente que o café tradicional (10). Estudos indicam que as metilxantinas contribuem para o relaxamento do esfíncter esofagiano (favorecendo o refluxo) e um componente presente na cera do grão do café, a 5-hidroxitripamida, é capaz de irritar a mucosa gástrica e estimular a secreção ácida (17). Já existem na Europa, produtos com menor quantidade dessa substância, denominados “cafés amigos do estômago”(3).

O hábito do consumo de café após as refeições é uma tradição e não há comprovação de que isso cause anemia. Entretanto, alguns profissionais tem recomendado evitar o consumo de café, mesmo sem cafeína, imediatamente antes, durante ou logo após refeições que contenham alimentos fonte de ferro, como por exemplo, cárneos, feijão, lentilha, amendoim e soja. Eles alegam que compostos fenólicos e melanoidinas presentes no café são capazes de se complexarem com o ferro no intestino e impedir a sua absorção.  Por este motivo, as pessoas com deficiência de ferro devem atentar para a possibilidade de o café inibir a absorção deste elemento.

O processo de torração afeta a composição química do café. Parte dos antioxidantes são degradados (ex. ácidos clorogénicos, tocoferóis), porém outras substâncias benéficas são formadas, como é o caso da harmana e nor-harmana (duas B-carbonilas), melanoidinas e 1,5 ƴ-quinolactonas (formada a partir da degradação dos ácidos clorogénicos). A ingestão de café com  estes compostos reduz o risco do desenvolvimento da doença de Parkinson e Alzheimer. Entretanto, a torra excessiva leva à formação de compostos tóxicos (aminas heterocíclicas) (6,8,11,12). A torra ideal é torra média, o que pode ser observado pela cor do pó, que não deve ser muito escuro (Figura 2).

A legislação brasileira estipula qualidades mínimas que o café deve apresentar para que possa ser comercializado. O teor de umidade do grão beneficiado cru deve ser, no máximo, 12,5% e matérias estranhas e impurezas, no máximo, 1%. Para o Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), matéria estranha significa detritos vegetais não oriundos do produto, grãos ou sementes de outras espécies e corpos estranhos de qualquer natureza, tais como pedras ou torrões. As pedras são oriundas da varrição ou de fragmentos do piso do terreiro, fase em que o café é colocado ao sol para perder umidade. Presença de insetos vivos no produto o torna para comercialização. A impureza é designada como casca, pau e outros detritos provenientes do próprio produto. Características do grão, negra opaca, e defeito físico também podem invalidar a comercialização. Por fim, também não podem ser vendidos cafés que apresentem: aspecto generalizado de mofo, mau estado de conservação, odor estranho de qualquer natureza (impróprio ao produto), resíduos de produtos fitossanitários, teor de micotoxinas e outros contaminantes ou substâncias nocivas à saúde acima do limite estabelecido por legislação específica vigente e nem presença de sementes tóxicas (13).

A Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic) (15),  não governamental,  lançou em 1989 o selo de controle de pureza do café. O objetivo é o monitoramento contínuo das marcas, a fim de inibir a ação de empresas que adulteram seus produtos e desmitificar a ideia de que cafés de qualidade eram apenas os exportados (Abic). Atualmente já existem mais de 500 empresas detentoras de mais de 1000 marcas de cafés comercializados. A Abic atesta que 5% das marcas são impuras. A empresa não é obrigada a aderir ao programa, e o não cumprimento do regulamento interno impede apenas que a mesma use o selo na embalagem do produto, mas não a sua comercialização, que depende exclusivamente do controle do Mapa.


Figura 2. Grãos do café arábica e robusta e diferentes graus de torra do café (15) 





Figura 3. Composição de Grãos Crús de Café (% base seca) (12)





Figura 4. Imagem do fruto maduro (16)

O café robusta (utilizado para fabricação do expresso), contem maior quantidade de cafeína e de ácido clorogênico que o café arábica (café solúvel e coado). Os tocoferóis (vitamina E) não são totalmente eliminados durante a torra, e estão presente no óleo do grão (principalmente no café arábica). Durante a fabricação do café expresso, há maior extração da parte lipídica do pó, e portanto, maior concentração de tocoferol quando comparada ao caseiro (filtragem simples) (11,12).  

Não há comprovação de que o consumo de café por si só provoque o surgimento de câncer, embora haja indício de que possa aumentar o risco de câncer de próstata. Todavia, a ingestão de pelo menos 2 xicaras de café por dia está relacionada com prevenção de vários tipos de câncer (mama, ovário, pele, reto, cólon e fígado). Os mecanismos bioquímicos ainda não estão elucindados, mas acredita-se que seja em função da ação de antioxidantes presentes na bebida, especialmente os diterpenos (cafestol e khweol) e polifenóis (17, 18).

O café tem efeito benéfico para os diabéticos, pois ajuda no controle da taxa de glicose sanguínea, pois é capaz de aumentar a sensibilidade dos receptores de insulina à mesma (6). Os mecanismos, entretanto, ainda não foram esclarecidos.

Referências

1. ABIC. Curiosidades. Disponível em < http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe /sys/start.htm?sid=55>. Data de acesso: 18 de novembro de 2015.
2. Embrapa. O café é a segunda bebida mais consumida no Brasil. Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:abGdqThN1l8J:https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/2574254/cafe-e-a-segunda-bebida-mais-consumida-no-brasil+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Data de acesso: 20 de setembro de 2015.
3. Illy, A.; Viani, R.; Espresso Coffee: the Science of Quality; 2nd ed., Else¬vier Academic Press: London, 2005
4. Smith, A. W. Em Coffee: Chemistry; Clarke, R. J.; Macrae, R., eds.; Elsevier Applied Science Publishers: London, 1987, vol. 1
5. Revista do agronegócio do café. Glossário Café: tipos, características e preparo. Disponível em: < http://www.revistacafeicultura.com.br/index.php?mat=15304>. Data de acesso: 20 de setembro de 2015.
6. Alves RC, Casal S, Oliveira, Beatriz. Benefícios do café na saúde: mito ou realidade? Quim. Nova, Vol. 32, No. 8, 2169-2180, 2009
7. Alves, AM. Jornal da Unicamp. Pesquisador desenvolve extrato de café solúvel. 243 (1):4, 2004.
8. Junior, ELC. Teores de metilxantinas e compostos fenólicos em extratos deerva-mate (Ilex paraguariensis St. Hil.). Universidade Estadual de Maringá. 124p. 2006
9. CAMARGO MCR, TOLEDO MCF. (1998) Teor de cafeína em cafés brasileiros. Ciênc. Tecnol. Aliment. 18 (4) 421-424p.
10. Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Portaria no377, de 26 de abril de 1999.
11. MONTEIRO MC,  TRUGO, LC. Determinação de compostos bioativos em amostras comerciais de café torrado. Quím. Nova [online]. 2005, vol.28, n.4, pp. 637-641. ISSN 1678-7064.
12. SALDAÑA MDA, MAZZAFERA P, MOHAMED RS. Extração dos alcalóides: cafeína e trigonelina dos grãos de café com c supercrítico. Ciênc. Tecnol. Aliment. vol. 17 n. 4 Campinas Dec. 1997
13. Brasil. Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.  Regulamento Técnico de Identidade e de Qualidade para a Classificação do Café Beneficiado Grão Cru. Instrução normativa no 8, 11 de julho de 2003.
14. ABIC. Café: a qualidade começa pela pureza. Disponível em http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=2. Data de acesso: 18 de novembro de 2015.
15. ____Blog do café. Tipos de torra do café. Disponível em <http://blogdocafe.com/2015/06/25/tipos-de-torra-de-cafe/. Data de acesso: 19 de novembro de 2015.
16. ____ Google. Imagens. Grão de café maduro. Disponível em <https://www.google.com.br/search ?q=caf%C3%A9+torra&biw=1366&bih=623&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiM25ehyarJAhWHN5AKHfOqCakQ_AUICCgD#tbm=isch&q=caf%C3%A9+maduro. Data de acesso: 19 de novembro de 2015.
17. Ainslie-Waldman EC, et al. Coffee intake and gastric cancer risk: The Singapore Chinese Health Study. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev, 2014.  23(4): 638–647.
18. Yu X, Bao Z, Zou J, Dong J. Coffee consumption and risk of cancers:a meta-analysis of cohort studies.  BMC Cancer 2011, 11:96.