Livre-arbítrio: isso existe mesmo?
Arthur Giraldi Guimarães*
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Quem comanda a máquina que comanda o corpo humano? |
O livre-arbítrio não existe! Sim, é isso que defendem alguns
neurocientistas, obviamente fundamentados em importantes evidências
científicas. A nossa consciência seria “enganada” pelo cérebro, que daria a
ilusão de que as decisões são tomadas por ela. Mas na verdade, ao que parece, quem
decide é o cérebro (que, aliás, é também o criador da própria consciência).
Em outras palavras, nossa consciência seria igual à Rainha
da Inglaterra: parece que é a soberana e que manda e decide tudo, mas na
verdade não manda e nem decide nada! Quem manda mesmo é o cérebro (que na
analogia feita seria o Parlamento).
Isso certamente nos obriga a rever e questionar o conceito
de “livre-arbítrio”, ou “vontade”. Isso existe mesmo? Naturalmente, este é um
tema de altíssima complexidade, e obviamente existe discordância de pontos de
vista entre os neurocientistas envolvidos neste tipo de estudo.
A ideia do livre-arbítrio como uma ilusão vem desde estudos
clássicos até estudos mais recentes. Um dos maiores defensores da ideia é o
neurocientista Michael Gazzaniga, coordenador do Centro para o Estudo da Mente
da Universidade da Califórnia, que escreveu recentemente um livro sobre esse
tema. Ele e muitos outros decretam o fim do livre-arbítrio baseados nos estudos
de mapeamento da atividade cerebral durante o pensamento e a execução de
movimentos e tarefas.
Basicamente, eles se apoiam nos resultados dos estudos que
mostraram que ocorre atividade cerebral antes da ocorrência da consciência. Os
exemplos são vários. Durante uma tarefa em que os voluntários tinham que
decidir por apertar um botão, foi demonstrado que a área pré-motora do cérebro
(responsável por planejar e coordenar a execução de movimentos) é ativada
milissegundos antes da tomada de decisão consciente em apertar o botão.
Mais que isso: num estudo em que voluntários tinham que
tomar a decisão de apertar um botão com a mão direita ou com a esquerda, os
pesquisadores foram capazes de prever qual seria a decisão tomada pelo
voluntário cerca de 7 segundos antes de ele tomar consciência do que fazia (ou seja,
antes do ato consciente).
Estes e outros estudos sugerem que a vontade consciente, o
sentimento de “querer” algo, ocorre depois, e não antes, da atividade cerebral.
Primeiro, o cérebro decide e manda a ordem de execução. Depois, ele cria a
consciência do ato, dando a sensação de que foi a consciência que quis e
determinou o ato. Daí, portanto, a ideia de que a vontade, o livre-arbítrio,
seria meramente uma ilusão, um “floreio” do nosso cérebro.
De fato, outra evidência de que primeiro ocorre a atividade
cerebral e depois a sensação de vontade é a observação de que a estimulação
elétrica, através de eletródios implantados diretamente na região cerebral de
representação motora da mão, induziu pacientes a sentirem vontade de levantar a
mão.
O próprio neurocientista Michael Gazzaniga já declarou que
nós não precisamos da nossa consciência para tomar decisão alguma. Então, qual
seria o papel dela? Lembre-se que a consciência também é fruto da atividade
cerebral, mas diferente daquela responsável pela decisão sobre uma ação, tomada
pelo cérebro.
É possível que ela sirva apenas para dar coerência e sentido
às coisas, uma forma de contextualização das ações, fazendo com que exista uma
razão e um sentido para as coisas que nós próprios fazemos e que nos dão a
sensação de continuidade do mundo percebido.
Como um assunto denso como esse não poderia deixar de ter
visões divergentes, existem pesquisadores que questionam as
metodologias usadas nestes estudos sobre mapeamento cerebral. Primeiro, existem
críticas no sentido de questionar se as técnicas usadas permitem medir
realmente com precisão o tempo (normalmente na ordem de segundos e
milissegundos) entre uma atividade cerebral e a execução de um movimento.
Segundo, todas as observações feitas nos estudos podem estar
provando apenas que algumas decisões são tomadas pelo cérebro antes da
consciência. Mas como são sempre testes particulares e específicos, com alto
grau de padronização e simplificação para ter acurácia metodológica, não seriam
prova definitiva de que todas as decisões possíveis sejam tomadas apenas de
forma inconsciente. A simplificação dos testes não abordaria formas mais
complexas de tomada de decisão, que aí sim poderiam perfeitamente necessitar da
consciência.
O fato é que, se pararmos para nos autoanalisarmos, veremos
que tomamos sim muitas decisões sem “pensar”, inconscientemente e involuntariamente,
mesmo que pareça que foi voluntária. Um exemplo pessoal: ontem, antes de
terminar de escrever esta coluna, fui à rua de carro. Num sinal com separação
de seguir em frente ou virar à esquerda, eu aguardava para virar à esquerda.
Então, apenas o sinal de seguir em frente abriu, e o carro que estava na frente
começou a andar (ele também pretendia virar à esquerda). Eu, ao ver de relance o sinal verde de “siga em frente” e
vendo o carro da frente ir, tomei a decisão de ir também e iniciei o arranque.
Segundos (ou milissegundos, nem sei bem!) depois, percebi que a decisão estava
errada e que o sinal de meu interesse, o de “vire à esquerda” ainda estava
fechado, e então freei o carro e esperei. Bem, a segunda decisão foi aparentemente
voluntária e consciente. Mas e a primeira? Essa certamente não foi.
À luz das evidências científicas apresentadas, a primeira
decisão, mesmo sendo de alta complexidade e de relevância para a sobrevivência,
foi rápida e não deu tempo de passar pela consciência. Depois que as
informações chegaram e foram processadas pela consciência, um “tempão” depois,
aí sim a segunda decisão pode ter sido tomada de forma consciente. Pelo menos é isso que eu acredito que tenha acontecido com o
meu cérebro durante este fato relatado! Mas, também segundo as evidências
apresentadas, mesmo a segunda decisão pode ter sido inconsciente, e meu cérebro
pode ter criado a ilusão de que foi minha (pobre) consciência que decidiu!
É, a neurociência é mesmo uma destruidora de ilusões! Para
aqueles autoconfiantes, seguros da sua capacidade de tomar decisões voluntárias
inteligentes e eficazes, cheios de si, sentimos muito em dizer que pode não ser
você quem decide as coisas. De certa forma até é você, pois no final das contas
cognitivamente você é o seu cérebro, mas pode ser que não seja o “eu
consciente” quem esteja à frente das coisas. Toda essa sua empáfia pode ser
apenas um “floreio” do seu cérebro.......triste, não?
Bom, essa discussão ainda está de pé e terá muitos e muitos
capítulos pela frente!
*Professor do
Laboratório de Biologia Celular e Tecidual (LBCT) do Centro de Biociências e
Biotecnologia (CBB) da UENF.
SUGESTÃO DE LEITURA:
Gazzaniga, Michael S. Who's in
Charge? Free Will and the Science of the Brain. 1ª Ed. Ecco /
HarperCollins, 2011.