Marcos Abraão Fernandes Ribeiro*
Falar
sobre o mestre Florestan Fernandes não é tarefa nada fácil devido à ampla,
complexa e seminal contribuição deixada por ele para a sociologia brasileira.
Todavia, podemos sintetizar sua contribuição dando ênfase à sua obra sobre a
revolução burguesa no Brasil. Antes, porém, vale a pena passarmos por sua
trajetória pessoal e acadêmica que é, sem sombra de dúvidas, extraordinária. Depois, sim, proporemos uma
apropriação da obra e da biografia deste brasileiro para uma breve consideração
sobre o sistema de cotas raciais na Uenf. Como se sabe, as cotas são uma
realidade na Uenf desde 2003, ainda que com algumas mudanças na legislação
estadual que rege o tema. Atualmente, um total de 45% das vagas em cada curso é
reservado para candidatos carentes de determinados perfis. Negros e indígenas
são destinatários de quase metade destas vagas (20% do total).
Florestan Fernandes |
Florestan
nasceu em São Paulo em 1920, filho de uma
mãe solteira, a lavadeira Maria Fernandes, imigrante portuguesa vinda da região do Minho, norte de Portugal. Seu nome
foi dado pela sua mãe em homenagem ao
motorista de uma casa em que ela trabalhara. Quando, durante um período de sua
infância, foi morar com sua madrinha - dona Ermínia Bresser de Lima -, teve de
mudar seu nome de Florestan para Vicente, pois ela considerava Florestan um
nome inapropriado para um menino pobre como ele.
Durante
este curto período em que viveu com sua
madrinha, Florestan recebeu,
como mesmo afirmara, sua primeira capa de socialização, pois foi levado à
escola onde aprendeu a ler e a escrever, além de ter ganho o gosto e a
disciplina pela leitura. Por conta da situação de penúria em que vivia, quando Florestan
saiu da casa de sua madrinha, teve logo cedo de aprender as dificuldades da
vida. Para ajudar a sua mãe a sustentar a casa, executou diversos trabalhos
como alfaiate e engraxate. Com isso abandonou os estudos. Todavia, sua vida tomaria
caminhos diferentes em sua juventude quando trabalhava como garçom no Bar Bidu.
Este bar ficava ao lado do Ginásio Riachuelo,
onde funcionava o curso de madureza que é equivalente à EJA (Educação de Jovens
e Adultos) dos dias atuais. Os professores iam tomar lanche no bar e ficavam
impressionados com o garçom que conversava sobre assuntos variados e vivia, nas
horas vagas, lendo debaixo do balcão. Florestan acabou tornando-se amigo de alguns
professores que o incentivaram e o ajudaram a voltar a estudar, pois
conseguiram um bom desconto para ele e ainda outro trabalho como entregador de
amostras do laboratório Nova Terápica. Desta forma Florestan completou os seus
estudos e decidiu que seria professor.
Primeiro ele pensara em engenharia química,
mas o curso era integral e não teria como fazer, uma vez que precisava manter a
casa. Com isso, decidiu fazer o curso de ciências sociais na Universidade de
São Paulo (USP), que era oferecido em meio período. Todavia, a USP não estava
aberta para pessoas advindas das classes baixas, como era o caso de Florestan.
Era uma universidade das elites para as elites. Como demonstração disso, o
concurso de admissão era feito em francês, língua dos mestres que vieram fundar
a universidade. Florestan conseguiu vencer essa barreira e apresentou oralmente
parte do clássico A Divisão do Trabalho
Social, do sociólogo francês Émile Durkheim, em português. Ficou em quinto
lugar, abrindo caminho para a construção de uma das carreiras mais brilhantes
que a academia brasileira já tivera.
Na USP, Florestan tornou-se licenciado e
professor assistente. Depois fez seu mestrado na Escola Livre de Sociologia e
Política sobre os tupinambá; seu doutorado na USP também sobre o tupinambá; a livre docência com
uma tese sobre o método funcionalista na sociologia e a cátedra com uma tese
clássica sobre a integração do negro na sociedade de classes. Ou seja, o menino
pobre vindo da ralé conseguiu
construir uma trajetória pessoal e profissional espetacular. Ao mesmo tempo,
foi o grande artífice da sociologia moderna brasileira, como nos apontam Garcia
e Arruda (2003), além de ter produzido pesquisas seminais sobre os índios
tupinambás, os negros e o tema do desenvolvimento. Estas pesquisas foram de
crucial importância para que o sociólogo paulista chegasse ao tema da revolução
burguesa no Brasil, obra que funciona como uma síntese da trajetória pessoal e
profissional que vimos acima.
Esta obra densa e bastante complexa foi
escrita em dois momentos distintos, uma vez que a primeira e segunda partes
foram escritas em 1966, e a terceira, em 1974. Ela demonstra que a revolução
burguesa também ocorrera para além dos casos clássicos e que possuía caminhos
tortuosos na perifeira do capitalismo. Com essa obra, Florestan nos aponta como
nos constituímos enquanto uma sociedade de classes fechada e excludente para
pobres, negros e mulatos. Ele demonstra como a democracia sempre foi algo
restrito apenas às camadas dominantes e como necessitamos de uma saída
revolucionária caso queiramos instituir uma ordem verdadeiramente democrática
no Brasil, na qual a riqueza, a cultura e o poder possam ser universalizados
para amplas camadas da população.
Nesse sentido, que lições podemos tirar da
trajetória e da obra-prima do mestre Florestan para uma realidade como a Uenf,
que possui um sistema de cotas que tem funcionado como fator de inclusão e de
combate à desigualdade racial e social (a qual é, no caso brasileiro, uma das
maiores de todo o globo)? Que é possível, sim, para os estudantes advindos das
cotas trilharem uma trajetória similar à que os filhos de classe média e das
elites, preparados em escolas de ponta, conseguem trilhar.
Eu mesmo estudei grande parte da minha
trajetória do ensino básico em escola pública. Lá percebi as carências do
ensino e a necessidade de um filho das classes populares ser muitas vezes autodidata
para conseguir competir com os filhos da classe média e das elites. Aos 15 anos,
a experiência de estudar em uma escola privada na cidade de Campos dos
Goytacazes me possibilitou, mesmo sem o conhecimento sociológico, observar como
a cidade possui uma realidade social conservadora e opressiva. Após o ensino
básico, pude fazer toda a minha formação na Uenf e também dar aula por três
anos nesta instituição. Com a experiência de quase oito anos de Uenf, pude
perceber, em relação ao curso de ciências sociais, que os alunos cotistas
possuíam um desempenho igual e muitas vezes melhor se comparado aos não cotistas.
Sei que as cotas não são a solução para o
problema educacional brasileiro, uma vez que o nó górdio a ser cortado está no
fracasso da educação básica e na necessidade de sua reforma estrutural. Mesmo
assim, na maioria dos casos, aqueles que se colocam contra apenas reproduzem,
conscientemente ou não, a ideologia liberal conservadora do mérito individual
tão ao gosto do capitalismo financeiro e da sociedade consumista, bem como os
privilégios de classe que sempre tiveram, impedindo a ascensão dos debaixo como
exemplarmente demonstrou o mestre Florestan em A Revolução Burguesa no Brasil.
*Doutorando em sociologia
política pela Uenf. E-mail:olamarcos@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário