sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Coluna Um quê de neurociência





Estado vegetativo e eutanásia: como ter certeza?


Arthur Giraldi Guimarães*


Após uma breve pausa, retornamos com nosso "neuropapo" mensal! 


Infelizmente, as lesões do Sistema Nervoso Central (SNC) são muito frequentes na população mundial. Estão entre as principais causas de morte e são a maior causa de incapacitação em seres humanos na atualidade. Como o SNC (figura 1) é o responsável pelos nossos movimentos, sensações e faculdades cognitivas, não é difícil entender porque uma lesão no encéfalo ou na medula espinhal pode ser tão devastadora.

No nosso dia a dia, frequentemente assistimos a notícias na TV (ou vivenciamos isso no nosso ciclo de contatos pessoais) sobre alguém que levou um tiro na cabeça, ou sofreu traumatismo craniano após um grave acidente de carro ou moto, ou teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC). E frases do tipo "entrou em estado de coma", "permanece em estado vegetativo" e "sofreu morte cerebral" se tornaram comuns no noticiário em geral.

Figura 1: O SNC é formado pelo encéfalo, localizado dentro da caixa craniana, e pela medula espinhal, localizada dentro da coluna vertebral.

Estes termos médicos estão todos relacionados com alterações nos níveis de resposta, conscientes e inconscientes, que uma pessoa é capaz de dar a estímulos após um acometimento do seu encéfalo, órgão responsável pela consciência e pela maior parte das respostas inconscientes.

O sistema nervoso pode ser dividido funcionalmente. O sistema nervoso somático é responsável pelas funções neurológicas voluntárias (conscientes), ou seja, por nossos movimentos voluntários e por nossas sensações conscientes. Ele controla os nossos músculos esqueléticos (que como o nome já diz, são associados ao esqueleto e são responsáveis pelo nosso comportamento consciente), bem como os nossos famosos "cinco sentidos".

O sistema nervoso autônomo (ou neurovegetativo, ou visceral) responde pelos controles involuntários (inconscientes). Isto corresponde aos movimentos internos das nossas vísceras, pois ele controla os músculos lisos destas, o músculo cardíaco (sendo que neste o controle é sobre a força e a frequência de contração, pois os batimentos são gerados pelo próprio coração e não dependem do sistema nervoso) e as secreções das glândulas exógenas. Ele também é responsável pelas sensações internas e inconscientes (monitoramento dos parâmetros internos do corpo, como pressão sanguínea, concentração de oxigênio e de gás carbônico do sangue, pH etc...).

Todo mundo anda ou levanta um dos braços quando quer fazer isso, mas ninguém controla quando o pâncreas vai secretar seu suco no interior do intestino. Da mesma forma, todo mundo vê, ouve ou sente algo tocando na pele, mas ninguém sente quando seu pH sanguíneo aumenta ou diminui. E é bom que seja assim! Imagina se você também tivesse que pensar para voluntariamente controlar seu sistema digestivo, sua pressão sanguínea, sua frequência respiratória e etc...? Não sobraria espaço para comandar as coisas que fazemos voluntariamente no nosso dia a dia, não é verdade?

O encéfalo é o responsável pelos dois sistemas. A sede da consciência é o telencéfalo, que corresponde ao que chamamos de cérebro (figura 2). Entretanto, a consciência também depende de outras estruturas, em especial o tronco encefálico (figura 2), que é responsável por "ligar" ou "desligar" o cérebro. Quando o tronco liga o cérebro estamos acordados (em vigília), e quando o tronco desliga o cérebro nós dormimos. Os sonhos são resultados de estimulações específicas do cérebro pelo tronco, ao mesmo tempo em que este bloqueia os comandos motores, impedindo os movimentos. Já as funções inconscientes são desempenhadas por diversas regiões, em especial o hipotálamo (figura 2), o tronco encefálico e o próprio cérebro.

O estado de coma se caracteriza pela perda da consciência, semelhante a um sono profundo. Mas não é um sono natural, pois a pessoa não acorda se for estimulada. O cérebro funciona, mas num nível de atividade muito baixo para permitir o estado de vigília, e mais ainda para permitir a consciência, apesar do indivíduo manter respostas e funções neurológicas involuntárias.

É causado quando a lesão encefálica atinge a região do tronco encefálico responsável por "ligar" o cérebro, deixando-o desligado. Como o tronco também controla funções neurológicas involuntárias vitais, como os movimentos respiratórios, pode-se observar perda de algumas destas funções, sendo necessário o uso de respirador artificial, por exemplo. Este estado pode durar dias, semanas ou meses.

Figura 2 - Principais regiões que compõem o encéfalo. O telencéfalo corresponde  ao que chamamos de 'cérebro'.  O  tronco encefálico se localiza mais internamente e está em continuidade com a medula espinhal.


Quando uma pessoa sofre uma lesão muito extensa e grave no cérebro, é comum os médicos provocarem o chamado coma induzido, através da aplicação de barbitúricos (drogas sedativas), que reduzem o nível de consciência. Essas drogas reduzem a atividade e o metabolismo encefálicos, levando à redução do seu fluxo sanguíneo. Portanto, a finalidade desta abordagem terapêutica é evitar o aumento da pressão intracraniana, reduzindo a pressão sanguínea e o edema que ocorre durante a resposta inflamatória à lesão.

Pior que o coma só a morte encefálica (mais conhecida como morte cerebral), que é o estado onde a pessoa perde, além da consciência, todas as respostas involuntárias. Ou seja, a pessoa perde irreversivelmente qualquer resposta neurológica derivada do seu encéfalo (mantendo apenas os reflexos da medula espinhal e o controle do trato gastrointestinal feito pelo Sistema Nervoso Entérico).

Do ponto de vista médico e legal, a morte encefálica é sinônima da própria morte, pois se considera que com a perda irreversível da funcionalidade do encéfalo, o que acarreta a perda das funções neurológicas (a principal delas a consciência), a vida humana não se faz mais presente. Mesmo que os outros sistemas fisiológicos estejam em funcionamento.

O coma pode evoluir para uma situação conhecida como estado vegetativo. Neste estado a pessoa volta a acordar, podendo manter um ciclo de sono e vigília normal. O nível de resposta a estímulos externos aumenta, voltando e ter respostas a estímulos visuais e auditivos, por exemplo. Entretanto, considera-se que a pessoa não apresenta consciência, não sendo capaz de manifestar reações voluntárias, mas apenas aquelas reflexas e involuntárias. Ele é resultado do retorno da capacidade do tronco em promover o ciclo de sono e vigília, mas quando o dano ao cérebro ou ao tálamo (porta de entrada sensorial para o cérebro; figura 2) é muito grande isto dificulta o retorno da consciência.

Este estado pode durar meses, anos ou mesmo décadas, e sempre suscita a discussão sobre a legalidade e a ética do uso da eutanásia nestes casos. Por um lado, manter por décadas um ente querido vivo, mas inconsciente, corresponde a um sofrimento devastador para a família. Por outro lado, existem evidências de que a inconsciência pode ser apenas aparente, pois existem inúmeros relatos de que pessoas tidas como em estado vegetativo foram capazes de chorar e sorrir, sendo estes claros sinais de consciência, ainda que precária.

Estudos da equipe liderada pelo neurocientista Adrian M. Owen, do Instituto de Mente e Cérebro da Universidade de Western Ontario -Canadá (publicados em revistas de grande relevância, como LANCET e The New England Journal of Medicine) podem ajudar a lançar luz sobre esse dilema. Nestes estudos eles utilizaram técnicas que permitem o registro da atividade cerebral, como o eletroencefalograma (EEG) e a ressonância magnética funcional (RMf).

Eles criaram protocolos simples que permitem ao paciente responder a uma pergunta, caso tenha consciência para isso. Num estudo, utilizando o EEG, foi pedido aos pacientes que se imaginassem apertando a mão direita e depois a relaxando toda vez que ouvissem um sinal sonoro específico. O padrão de ativação cerebral normal para esta tarefa foi caracterizado em pessoas saudáveis. O resultado foi que 3 dos 16 pacientes em estado vegetativo analisados mostraram o padrão de ativação normal quando solicitados a realizar da tarefa, o que sugere que eles entenderam e responderam corretamente.

Num outro estudo, utilizando a ressonância magnética, foi pedido para que 54 pacientes se imaginassem ou jogando tênis ou andando por locais familiares. Cada pensamento deste ativa uma região diferente do cérebro. Em 4 pacientes foi observado o padrão de ativação correto para cada pensamento (da área responsável pelo movimento do corpo no pensamento do tênis, e da área que comanda a noção espacial no pensamento do local familiar).

Além disso, 1 deles conseguiu inclusive associar o pensamento do tênis à resposta “sim” e o do local familiar à resposta “não”. Foram feitas 6 perguntas de resposta “sim” ou “não”, e ele acertou a 5.

Portanto, estes resultados mostram que o protocolo vigente para diagnóstico do estado vegetativo é falho e defasado. Este é só um dos exemplos de como as técnicas de imageamento funcional estão revolucionando o nosso conhecimento sobre o cérebro e ajudando o corrigir erros de diagnóstico.

Não se trata de fazer julgamentos, pois ninguém pode ser culpado pelo desconhecimento. Mas a inclusão destas técnicas no diagnóstico certamente irá evitar os possíveis erros já cometidos, como eutanásias praticadas em indivíduos conscientes, que não tiveram a chance de se manifestar se queriam ou não ter suas vidas abreviadas.

*Professor do Laboratório de Biologia Celular e Tecidual (LBCT) do Centro de Biociências e Biotecnologia (CBB) da UENF.


SUGESTÃO DE LEITURA:

Monti MM, Vanhaudenhuyse A, Coleman MR, Boly M, Pickard JD, Tshibanda L, Owen AM, Laureys S. Willful modulation of brain activity in disorders of consciousness. N Engl J Med. 2010 362(7):579-89.

Cruse D, Chennu S, Chatelle C, Bekinschtein TA, Fernández-Espejo D, Pickard JD, Laureys S, Owen AM. Bedside detection of awareness in the vegetative state: a cohort study. Lancet. 2011 378(9809):2088-94.

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